Assimetria ao Caminhar, o coxo e a marca do outro mundo:
Dos Kallikantzaroi aos Sacís e de Hefesto á Édipo
“Não existem povos, por mais primitivos que sejam, sem religião e magia. Assim como não existem, diga-se de passagem, quaisquer raças selvagens que não possuam atitude científica ou ciência, embora esta falha lhes seja freqüentemente imputada”
Magia, ciência e religião, 1988:19
Eu tinha como meta publicar ao menos um texto por semana neste blog - afinal não o utilizo apenas como canal de promoção de trabalhos em diferentes vertentes de atuação profissional.Quase nunca sou bem sucedido nesta meta, na real sou meio "claudicante para com isto (rsssss) - afinal a minha vida tem diversas priorídades que lídam diretamente com aspectos de poder viver como sinto que devo viver.E como só escrevo sobre o que vivêncio...já viu né.Tudo depende inicialmente de certa inspiração...
Inspiração vem do spiritus latino ou grego, vêm sabe-se lá de onde, organiza e ordena memórias, imaginário, teorias, estudos, artes, sentidos e coisas que ouvimos de orelhada e nos arrastam para o que Salvador Dali chamava de gavetões do grande armário, que para ele representava o inconsciente.Há algumas semelhanças de práticas espirituais entre Dalí e o magista inglês
Austin Osman Spare (velho conviva de meu trabalho!) que explorarei futuramente nos textos daqui (ambos reíficavam o sublime na realidade através da arte)...mas de volta á inspiração - o que torna bem interessante para se pensar onde começa cultura ou onde se explora a espiritualidade - esta última passa bem longe dos dogmatismos e confusões de melíndres próprios que predominam em suas abordagens nas massas, onde aparentemente qualquer feito "sobrenatural"
(se é lá que existe, algo além da natureza!) ou possesão simplesmente erradica a necessidade de algo mais "sábio" ou que atréle o tom vivêncial e o mistério que é viver instante a instante.Justamente por apreciar o ato de "caçar" e de "viver" compartilho algumas ilustrações e um diálogo intertextual que inspiraram tais criações visuais.
Na madrugada da última terça 3 de Abril de 2012, depois de concluir um extenso ensaio sobre Stadhagaldr e alfabetos de poder, executei esta ilustração digital inspirada nos textos da amiga Katy Frisvold e fragmentos de um artigo do Marcos Torrigo (ainda não concluído).A temática do coxo, do manco, das marcas nos pés - instintivamente me remeteu a alguns conteúdos que publiquei no site oficial do Círculo Strigoi e que compartilho aqui, amplamente inspirados em um estudo que desenvolví ao lado da querida Soraya Mariani.O desfecho deste diálogo sincrônico e imaginário se dá na obra de Robert Graves pautada em mitos do antigo mediterrâneo.Boa jornada e boa páscoa!
1.Segundo Katy Frisvold no texto As Bruxas de Vera Cruz:(...) ou do Saci, que entre os índios era uma pequena coruja que representava a alma de algum maldoso pajé, que não satisfeito em fazer maldades na terra, piava, trazendo maus agouros aos que lhe caem em desgraça. Mais tarde este mito se misturou ao imaginário do negro e europeu, fazendo do Saci um personagem parecido com um duende: um menino negro perneta vestindo um gorro mágico vermelho na cabeça, fumando um cachimbo.(...)citando a obra de Afonso Arinos – Pelo Sertão, Histórias e paisagens. Rio de Janeiro, 1898.(...)No folclore brasileiro, onde exemplos abundam, encontramos a figura do Saci-Pererê, como foi popularizada pelo escritor paulista Monteiro Lobato em “Sítio do Pica-pau Amarelo”. O Saci é uma espécie de duende brasileiro: assim como os Pixies ingleses, é perigoso encontrá-los nas florestas. Embora não usem luzes como seus pares ingleses, assoviam ou fazem redemoinhos no ar, atordoando os humanos que lhe cruzam o caminho. Exatamente como os Pixies, eles também gostam de tomar emprestado cavalos, trazendo-os pela manhã exaustos, suados e com as crinas trançadas. As lendas que correm do Amazonas ao Rio Grande do Sul o descrevem como um pequeno menino negro, de uma só perna, vestindo uma tanga (às vezes nu) e um pequeno barrete vermelho, onde portaria sua magia. O viajante que cruza seu caminho, quando o avista, pode chamar-lhe pelo nome, e é isto que o faz desaparecer com uma grande gargalhada.
Originalmente “saci” é uma espécie de coruja pequena, que faz repetir o som que lhe deu o nome durante as noites. Os índios o viam como um pássaro agourento, pois estas corujas eram as representações das almas dos “maus pajés”, que através dos seus gritos, anunciavam desgraças àqueles a quem desaprovavam.Até aqui reparamos a fusão das mitologias indígena e européia, e a explicação de sua aparência e comportamento pode ser encontrada nos mitos africanos: na lenda de Osanyin, Orixá das ervas medicinais, onde encontramos a figura de Aroni, um auxiliar e mensageiro de Osanyin. Ele é um anão, e de acordo com os relatos obtidos na África, a cada período de anos ele ‘seqüestra’ uma criança de cerca de 8 ou 9 anos de idade, levando-o para a floresta para aprender a Arte com o próprio Osanyin, seu mestre. Esta criança retorna à família já moço, com cerca de 18 ou 19 anos de idade, portando o conhecimento do uso das ervas medicinais. Existem relatos de que estes jovens possuem o conhecimento de mais de 10.000 diferentes ervas. O saci brasileiro então possui a “maldade” do antigo saci indígena, a aparência de Aroni, o comportamento do Pixie inglês e os poderes mágicos das três lendas em seu pequeno chapéu vermelho(...)Confiram as quatro partes deste artigo chamado "As Bruxas de Vera Cruz" no blog da autora.
2.Segundo o pesquisador Marcos Torrigo em seu ensaio (ainda não concluído): Um mito pode sofrer muitas transformações e acréscimos, perder ou ganhar significados , um exemplo é a história de Édipo.Personagens com problemas nos pés são encontradas nas mitologias de vários povos, o nome Édipo significa pé inchado.Devido à maldição profetizada por Delfos de ser morto pelo seu próprio filho, Laio, Rei de Tebas, furou os pés do filho e abandonou o recém nascido no monte Citeron A criança foi encontrada por um pastor que a entregou a Polibo, Rei de Corinto, que o criou como seu filho.
Muitos anos depois Édipo, já um jovem, vai a Delfos onde a pitonisa o escorraça dizendo -saia desgraçado, você vai matar seu pai e se casar com a sua mãe. Ele não retorna a Corinto para fugir da profecia, mas ao fazê-lo justamente faz com que ela se realize ao matar um desconhecido em uma briga na estrada, o desconhecido era Laio.Na sua jornada Édipo encontra a esfinge que está assolando Tebas devorando as pessoas que não desvendam uma charada: Qual o ser, com apenas uma voz , tem por vezes dois pés, por vezes três, e por vezes quatro, e quanto mais tem, mais fraco é? Édipo adivinha a resposta, a esfinge se mata, e põem fim a maldição. Com isso ele é recebido como herói e casa-se com a viúva, sua mãe Jocasta.A narrativa trás elementos que remetem possivelmente há uma matriz mítica (iniciática) mais antiga onde o herói desce ao reino dos mortos e retorna. O ferimento infligido aos pés é parte de um rito que se destina a promover a condição sobre-humana. Manco, coxo, um só pé são epítetos de varias divindades podemos citar também Aquiles e o seu ponto fraco o calcanhar ou o saci do folclore brasileiro.
No caso de Édipo temos ainda o encontro com a esfinge, ser mítico mortuário, “abundando na opinião dos próprios sofredores, que o mundo subterrâneo mandara a esfinge contra Tebas( Karl Kerényi, Os Heróis Gregos ). Depois a perseguição pelas infernais Erínias,acentuando o lado ctônico da personagem.Não podemos esquecer que o ferimento que Édipo recebeu nos pés é uma forma de evitar o malefício ao qual estava predestinado.
Leone Allaci falando dos Vampiros de Quios os Kallikantzaroi, espíritos que deixam o mundo dos mortos para vagar sobre a terra, nós informa que as crianças nascidas entre o natal e a epifania tinham a planta dos pés queimadas para não se tornarem Vampiros.Carlos Ginzburg comentando a respeito:“ Entrevemos a reinterpretação daquilo que no passado devia ser um rito propiciatório, de caráter iniciático, destinado a promover a condição sobre-humana quem a ele se submetesse”.Ou ainda “No desequilíbrio deambulatório que caracteriza divindades como Hermes ou Dionisio, ou então heróis como Jasão ou Perseu, deciframos o símbolo de uma passagem mais radical – uma conexão permanente ou temporária como mundo dos mortos”.
“Mitos e ritos em que os ossos, encerrados nas peles, são usados para obter a ressurreição dos animais mortos foram identificados, como se recordará, num âmbito geográfico vastíssimo e heterogêneo”.“Isso permite generalizar a crença, registrada no principio do século XIII por Gervásio de Tilbury, segundo a qual o lobisomem que tivesse uma pata mutilada recuperava logo a forma humana. Quem vai ao outro mundo ou de lá retorna – animal, homem ou a mistura de ambos – fica marcado por uma assimetria no caminhar”.Algumas partes deste texto inacabado de Marcos Torrigo e a compreensão sobre elas pode ser régiamente ampliada com a leitura do livro "Vampiros, Lendas, Origens lançada pela editora Idéia & Ação e de autoria do próprio Marcos Torrigo.